domingo, 27 de março de 2011

Dicionário

Faz um tempo que li esse texto de Cecília Meireles: O livro da solidão; e a pouco, encontrei essa tirinha de Quino que me fez lembrar o texto; estou postando-os aqui porque fiquei pensando no lugar que o dicionário ocupa em nossa postura de leitores. Bom, sendo sincera, se eu fosse a uma ilha deserta provavelmente eu o esqueceria na lista enorme de livros que gostaria de levar. Talvés, Mafalda tenha razão, não pensamos no dicionário como Cecília Meireles, só o consultamos bem rapidinho e o devolvemos a estante. Engraçado, agora mesmo precisei dele pra consultar a grafia da palavra precise. É claro, que com o google fica mais fácil... mas já que estamos falando em livros... Vamos lá, talvés eu não lembrasse dele na hora de escolher qual livro levar, mas provavelmente sentiria falta dele por lá, nem que fosse para uma consultadassinha. (rsrsrs)

O livro da solidão

"Os senhores todos conhecem a pergunta famosa universalmente repetida: 'Que livro escolheria para levar consigo, se tivesse de partir para uma ilha deserta…?'
Vêm os que acreditam em exemplos célebres e dizem naturalmente: 'Uma história de Napoleão.' Mas uma ilha deserta nem sempre é um exílio… Pode ser um passatempo…
Os que nunca tiveram tempo para fazer leituras grandes, pensam em obras de muitos volumes. É certo que numa ilha deserta é preciso encher o tempo… E lembram-se das Vidas de Plutarco, dos Ensaios de Montaigne, ou, se são mais cientistas que filósofos, da obra completa de Pasteur. Se são uma boa mescla de vida e sonho, pensam em toda a produção de Goethe, de Dostoievski, de Ibsen. Ou na Bíblia. Ou nas Mil e uma noites.
Pois eu creio que todos esses livros, embora esplêndidos, acabariam fatigando; e, se Deus me concedesse a mercê de morar numa ilha deserta (deserta, mas com relativo conforto, está claro — poltronas, chá, luz elétrica, ar condicionado) o que levava comigo era um Dicionário. Dicionário de qualquer língua, até com algumas folhas soltas; mas um Dicionário.
Não sei se muita gente haverá reparado nisso — mas o Dicionário é um dos livros mais poéticos, se não mesmo o mais poético dos livros. O Dicionário tem dentro de si o Universo completo.
Logo que uma noção humana toma forma de palavra — que é o que dá existência ás noções — vai habitar o Dicionário. As noções velhas vão ficando, com seus sestros de gente antiga, suas rugas, seus vestidos fora de moda; as noções novas vão chegando, com suas petulâncias, seus arrebiques, às vezes, sua rusticidade, sua grosseria. E tudo se vai arrumando direitinho, não pela ordem de chegada, como os candidatos a lugares nos ônibus, mas pela ordem alfabética, como nas listas de pessoas importantes, quando não se quer magoar ninguém…
O Dicionário é o mais democrático dos livros. Muito recomendável, portanto, na atualidade. Ali, o que governa é a disciplina das letras. Barão vem antes de conde, conde antes de duque, duque antes de rei. Sem falar que antes do rei também está o presidente.
O Dicionário responde a todas as curiosidades, e tem caminhos para todas as filosofias. Vemos as famílias de palavras, longas, acomodadas na sua semelhança, — e de repente os vizinhos tão diversos! Nem sempre elegantes, nem sempre decentes, — mas obedecendo á lei das letras, cabalística como a dos números…
O Dicionário explica a alma dos vocábulos: a sua hereditariedade e as suas mutações.
E as surpresas de palavras que nunca se tinham visto nem ouvido! Raridades, horrores, maravilhas…
Tudo isto num dicionário barato — porque os outros têm exemplos, frases que se podem decorar, para empregar nos artigos ou nas conversas eruditas, e assombrar os ouvintes e os leitores…
A minha pena é que não ensinem as crianças a amar o Dicionário. Ele contém todos os gêneros literários, pois cada palavra tem seu halo e seu destino — umas vão para aventuras, outras para viagens, outras para novelas, outras para poesia, umas para a história, outras para o teatro.
E como o bom uso das palavras e o bom uso do pensamento são uma coisa só e a mesma coisa, conhecer o sentido de cada uma é conduzir-se entre claridades, é construir mundos tendo como laboratório o Dicionário, onde jazem, catalogados, todos os necessários elementos.
Eu levaria o Dicionário para a ilha deserta. O tempo passaria docemente, enquanto eu passeasse por entre nomes conhecidos e desconhecidos, nomes, sementes e pensamentos e sementes das flores de retórica.
Poderia louvar melhor os amigos, e melhor perdoar os inimigos, porque o mecanismo da minha linguagem estaria mais ajustado nas suas molas complicadíssimas. E sobretudo, sabendo que germes pode conter uma palavra, cultivaria o silêncio, privilégio dos deuses, e ventura suprema dos homens."
(São Paulo, Folha da Manhã, 11 de julho de 1948.)

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Espelhos...



Em Entre os Atos, Virginia Woolf, escritora inglesa moderna, brinca majestosamente com a História. De início a História da Inglaterra em vários atos (encenações teatrais) que se misturam aos fatos vivenciados pelos personagens do romance.  Esses atos vão representando as épocas vitais de uma Inglaterra vitoriana e vai coincidindo com a História universal, ou seja, de cada homem em particular. Fantasias são usadas – como na maioria dos teatros, para essas representações; mas então todos da platéia ficam curiosos, assim como nós espectadores/leitores, quando anunciam que irão representar a época vivenciada. A platéia de inicio não compreende os artifícios utilizados pela escritora da peça para chamar-lhes a atenção da qual necessita para transmitir a idéia que quer compartilhar. Excessões à parte, entendemos que nem todos os que por algum motivo debruça em um livro é por isso um bom leitor, assim como nem todos os que dedicam tempo a arte seja ela cenográfica, plástica, musical ou qualquer outra é necessariamente um ótimo deslumbrador ou atencioso o suficiente para captar todas as sutilezas apresentadas. Aprendemos a ler decodificando palavras e letras, mas é difícil ler silêncio e símbolos nele empregados.  Um pensamento de Borges torna-se importante aqui: “Até mesmo os sons articulados e brutais do globo devem constituir linguagens e códigos que, em algum lugar, tenham as legendas correspondentes – tenham a sua própria gramática e sintaxe; portanto, as menores coisas do universo devem ser os espelhos secretos das maiores” (grifo meu)
Espelhos. Espelhos refletem a imagem a eles expostas. Essa é a artimanha utilizada para (re)apresentar a época atual (para os personagens). Borges diz que “os espelhos e a paternidade são abomináveis, porque multiplicam e disseminam o Universo”. Os espectadores da peça sentiram isso na própria pele, - ou na consciência? Disseram-me que um dos efeitos característicos da arte é chocar, mexer com aquela parte da consciência que está acomodada, fazer pensar, levar a auto-reflexão. Pois bem, penso que até então nenhum dos espectadores havia pensado sobre o efeito de um reflexo de um espelho. Tudo bem se, se tratasse  do reflexo de uma coisa ou outra... Coisas que estamos acostumados a ver cotidianamente. Mas o espelho refletiu a própria platéia... O rosto e os fragmentos de cada um espectador presente. Nossa própria imagem... Cada expectador deixou de ver ao outro para perceber a sua própria existência... Então Virginia diz através de um de seus personagens: “...olhemos para nós mesmos damas e cavalheiros!” E concluo com outra frase de Borges: "Qualquer destino, por longo e complicado que seja, consta na realidade de um único momento: o momento em que o homem sabe para sempre quem é". 







terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

"Leio em busca de Lustros" Emerson


Harold Bloom (crítico literário norte- americano) citando Ralph Waldo Emerson (1803-1882) diz que em consonância com os clássicos pertencentes à tradição platônica, Lustro refere-se ao brilho decorrente da luz refletida. Neste caso eles estariam pensando e falando sobre o reflexo de um gênio sobre outro gênio. Para nós, leitores comuns – na designação de Virgínia Woolf (1882-1941), ler em busca de Lustros assim como lia Emerson e seus predecessores é buscar algo que aguce e alargue minha conscientização, é buscar algo que toque o que há de melhor e de primordial em mim, segundo afirmativas de Bloom; e em um trecho onde comenta os gênios de Jorge Luis Borges e de Shakespeare escreve uma paródia de Borges que por sua vez é uma paródia de Shakespeare e que pode completar esse pensamento: “Nós e Borges não podemos ser Shakespeare, (leia-se o lustro principal; na concepção haroldiana), mas, simplesmente, aquilo que somos nos fará sobreviver”

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Os dois reis e os dois labirintos - Jorge Luis Borges


Contam os homens dignos de fé (mas alá sabe mais) que nos primeiros tempos houve um rei das ilhas da Babilônia que reuniu seus arquitetos e magos e os mandou construir um labirinto tão desconcertante e sutil, que os varões mais prudentes não se aventuravam a entrar, e os que entravam se perdiam. A obra era um escândalo, porque a confusão e a maravilha são operações próprias de Deus, e não dos homens. Com o passar do tempo veio à sua corte um rei dos árabes, e o rei da Babilônia (para zombar da simplicidade do hóspede) fez com que ele penetrasse no labirinto, onde perambulou ofendido e confuso até ao cair da tarde. Então implorou socorro divino e deu com a porta. Seus lábios não proferiram queixa alguma, mas disse ao rei da Babilônia que ele na Árabia também tinha um labirinto que, se Deus lhe fosse servido, lhe daria a conhecer algum dia. Depois voltou à Árabia, reuniu seus capitães e alcaides e devastou os reinos da Babilônia com tamanha boa sorte que arrassou seus castelos, dizimou sua gente e aprisionou o rei. Amarrou-o em cima de um camelo veloz e o levou para o deserto. Cavalgaram três dias, e disse-lhe: "Ó rei do tempo e substância e cifra do século!, na Babilônia desejaste que eu me perdesse num labirinto de bronze com muitas escadas, portas e muros; o Poderoso teve por bem que eu agora te mostre o meu, onde não há escadas a subir, nem portas a forçar, nem cansativas galerias a percorrer, nem muros para impedir a passagem".
Logo depois, dessamarrou-o e o abandonou no meio do deserto, onde ele morreu de fome e de sede. A glória esteja com Aquele que não morre.