quarta-feira, 2 de maio de 2012

O Cavalheiro da Triste Figura





 Dom Quixote de La Mancha... o "incrível livro sem limites" - nas palavras de Harold Bloom.


 "...as cousas humanas não são eternas e vão sempre em declinação desde o principio até o seu fim, especialmente as vidas dos homens; e como a de Dom Quixote não tivesse privilegio do céu para seguir o seu termo e acabamento, quando menos esperava ... deu a alma a Deus: quero dizer, morreu". 


E esse é sempre o fim, não é? a morte. Como disse o próprio Dom páginas antes... 


"Para tudo há remédio, menos para a morte... e pensar que todas as cousas desta vida ao de sempre durar é escusado, antes parece que anda tudo a roda. A primavera segue-se o verão, ao verão o outono, ao outono o inverno, e ao inverno a primavera, e assim gira e regira o tempo nesta volta contínua. Só a vida humana corre para o seu fim, ligeira, mais do que o tempo, sem esperar o renovar-se, a não ser na outra, que não tem termos que a limitem".

domingo, 27 de março de 2011

Dicionário

Faz um tempo que li esse texto de Cecília Meireles: O livro da solidão; e a pouco, encontrei essa tirinha de Quino que me fez lembrar o texto; estou postando-os aqui porque fiquei pensando no lugar que o dicionário ocupa em nossa postura de leitores. Bom, sendo sincera, se eu fosse a uma ilha deserta provavelmente eu o esqueceria na lista enorme de livros que gostaria de levar. Talvés, Mafalda tenha razão, não pensamos no dicionário como Cecília Meireles, só o consultamos bem rapidinho e o devolvemos a estante. Engraçado, agora mesmo precisei dele pra consultar a grafia da palavra precise. É claro, que com o google fica mais fácil... mas já que estamos falando em livros... Vamos lá, talvés eu não lembrasse dele na hora de escolher qual livro levar, mas provavelmente sentiria falta dele por lá, nem que fosse para uma consultadassinha. (rsrsrs)

O livro da solidão

"Os senhores todos conhecem a pergunta famosa universalmente repetida: 'Que livro escolheria para levar consigo, se tivesse de partir para uma ilha deserta…?'
Vêm os que acreditam em exemplos célebres e dizem naturalmente: 'Uma história de Napoleão.' Mas uma ilha deserta nem sempre é um exílio… Pode ser um passatempo…
Os que nunca tiveram tempo para fazer leituras grandes, pensam em obras de muitos volumes. É certo que numa ilha deserta é preciso encher o tempo… E lembram-se das Vidas de Plutarco, dos Ensaios de Montaigne, ou, se são mais cientistas que filósofos, da obra completa de Pasteur. Se são uma boa mescla de vida e sonho, pensam em toda a produção de Goethe, de Dostoievski, de Ibsen. Ou na Bíblia. Ou nas Mil e uma noites.
Pois eu creio que todos esses livros, embora esplêndidos, acabariam fatigando; e, se Deus me concedesse a mercê de morar numa ilha deserta (deserta, mas com relativo conforto, está claro — poltronas, chá, luz elétrica, ar condicionado) o que levava comigo era um Dicionário. Dicionário de qualquer língua, até com algumas folhas soltas; mas um Dicionário.
Não sei se muita gente haverá reparado nisso — mas o Dicionário é um dos livros mais poéticos, se não mesmo o mais poético dos livros. O Dicionário tem dentro de si o Universo completo.
Logo que uma noção humana toma forma de palavra — que é o que dá existência ás noções — vai habitar o Dicionário. As noções velhas vão ficando, com seus sestros de gente antiga, suas rugas, seus vestidos fora de moda; as noções novas vão chegando, com suas petulâncias, seus arrebiques, às vezes, sua rusticidade, sua grosseria. E tudo se vai arrumando direitinho, não pela ordem de chegada, como os candidatos a lugares nos ônibus, mas pela ordem alfabética, como nas listas de pessoas importantes, quando não se quer magoar ninguém…
O Dicionário é o mais democrático dos livros. Muito recomendável, portanto, na atualidade. Ali, o que governa é a disciplina das letras. Barão vem antes de conde, conde antes de duque, duque antes de rei. Sem falar que antes do rei também está o presidente.
O Dicionário responde a todas as curiosidades, e tem caminhos para todas as filosofias. Vemos as famílias de palavras, longas, acomodadas na sua semelhança, — e de repente os vizinhos tão diversos! Nem sempre elegantes, nem sempre decentes, — mas obedecendo á lei das letras, cabalística como a dos números…
O Dicionário explica a alma dos vocábulos: a sua hereditariedade e as suas mutações.
E as surpresas de palavras que nunca se tinham visto nem ouvido! Raridades, horrores, maravilhas…
Tudo isto num dicionário barato — porque os outros têm exemplos, frases que se podem decorar, para empregar nos artigos ou nas conversas eruditas, e assombrar os ouvintes e os leitores…
A minha pena é que não ensinem as crianças a amar o Dicionário. Ele contém todos os gêneros literários, pois cada palavra tem seu halo e seu destino — umas vão para aventuras, outras para viagens, outras para novelas, outras para poesia, umas para a história, outras para o teatro.
E como o bom uso das palavras e o bom uso do pensamento são uma coisa só e a mesma coisa, conhecer o sentido de cada uma é conduzir-se entre claridades, é construir mundos tendo como laboratório o Dicionário, onde jazem, catalogados, todos os necessários elementos.
Eu levaria o Dicionário para a ilha deserta. O tempo passaria docemente, enquanto eu passeasse por entre nomes conhecidos e desconhecidos, nomes, sementes e pensamentos e sementes das flores de retórica.
Poderia louvar melhor os amigos, e melhor perdoar os inimigos, porque o mecanismo da minha linguagem estaria mais ajustado nas suas molas complicadíssimas. E sobretudo, sabendo que germes pode conter uma palavra, cultivaria o silêncio, privilégio dos deuses, e ventura suprema dos homens."
(São Paulo, Folha da Manhã, 11 de julho de 1948.)

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Espelhos...



Em Entre os Atos, Virginia Woolf, escritora inglesa moderna, brinca majestosamente com a História. De início a História da Inglaterra em vários atos (encenações teatrais) que se misturam aos fatos vivenciados pelos personagens do romance.  Esses atos vão representando as épocas vitais de uma Inglaterra vitoriana e vai coincidindo com a História universal, ou seja, de cada homem em particular. Fantasias são usadas – como na maioria dos teatros, para essas representações; mas então todos da platéia ficam curiosos, assim como nós espectadores/leitores, quando anunciam que irão representar a época vivenciada. A platéia de inicio não compreende os artifícios utilizados pela escritora da peça para chamar-lhes a atenção da qual necessita para transmitir a idéia que quer compartilhar. Excessões à parte, entendemos que nem todos os que por algum motivo debruça em um livro é por isso um bom leitor, assim como nem todos os que dedicam tempo a arte seja ela cenográfica, plástica, musical ou qualquer outra é necessariamente um ótimo deslumbrador ou atencioso o suficiente para captar todas as sutilezas apresentadas. Aprendemos a ler decodificando palavras e letras, mas é difícil ler silêncio e símbolos nele empregados.  Um pensamento de Borges torna-se importante aqui: “Até mesmo os sons articulados e brutais do globo devem constituir linguagens e códigos que, em algum lugar, tenham as legendas correspondentes – tenham a sua própria gramática e sintaxe; portanto, as menores coisas do universo devem ser os espelhos secretos das maiores” (grifo meu)
Espelhos. Espelhos refletem a imagem a eles expostas. Essa é a artimanha utilizada para (re)apresentar a época atual (para os personagens). Borges diz que “os espelhos e a paternidade são abomináveis, porque multiplicam e disseminam o Universo”. Os espectadores da peça sentiram isso na própria pele, - ou na consciência? Disseram-me que um dos efeitos característicos da arte é chocar, mexer com aquela parte da consciência que está acomodada, fazer pensar, levar a auto-reflexão. Pois bem, penso que até então nenhum dos espectadores havia pensado sobre o efeito de um reflexo de um espelho. Tudo bem se, se tratasse  do reflexo de uma coisa ou outra... Coisas que estamos acostumados a ver cotidianamente. Mas o espelho refletiu a própria platéia... O rosto e os fragmentos de cada um espectador presente. Nossa própria imagem... Cada expectador deixou de ver ao outro para perceber a sua própria existência... Então Virginia diz através de um de seus personagens: “...olhemos para nós mesmos damas e cavalheiros!” E concluo com outra frase de Borges: "Qualquer destino, por longo e complicado que seja, consta na realidade de um único momento: o momento em que o homem sabe para sempre quem é". 







terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

"Leio em busca de Lustros" Emerson


Harold Bloom (crítico literário norte- americano) citando Ralph Waldo Emerson (1803-1882) diz que em consonância com os clássicos pertencentes à tradição platônica, Lustro refere-se ao brilho decorrente da luz refletida. Neste caso eles estariam pensando e falando sobre o reflexo de um gênio sobre outro gênio. Para nós, leitores comuns – na designação de Virgínia Woolf (1882-1941), ler em busca de Lustros assim como lia Emerson e seus predecessores é buscar algo que aguce e alargue minha conscientização, é buscar algo que toque o que há de melhor e de primordial em mim, segundo afirmativas de Bloom; e em um trecho onde comenta os gênios de Jorge Luis Borges e de Shakespeare escreve uma paródia de Borges que por sua vez é uma paródia de Shakespeare e que pode completar esse pensamento: “Nós e Borges não podemos ser Shakespeare, (leia-se o lustro principal; na concepção haroldiana), mas, simplesmente, aquilo que somos nos fará sobreviver”

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Os dois reis e os dois labirintos - Jorge Luis Borges


Contam os homens dignos de fé (mas alá sabe mais) que nos primeiros tempos houve um rei das ilhas da Babilônia que reuniu seus arquitetos e magos e os mandou construir um labirinto tão desconcertante e sutil, que os varões mais prudentes não se aventuravam a entrar, e os que entravam se perdiam. A obra era um escândalo, porque a confusão e a maravilha são operações próprias de Deus, e não dos homens. Com o passar do tempo veio à sua corte um rei dos árabes, e o rei da Babilônia (para zombar da simplicidade do hóspede) fez com que ele penetrasse no labirinto, onde perambulou ofendido e confuso até ao cair da tarde. Então implorou socorro divino e deu com a porta. Seus lábios não proferiram queixa alguma, mas disse ao rei da Babilônia que ele na Árabia também tinha um labirinto que, se Deus lhe fosse servido, lhe daria a conhecer algum dia. Depois voltou à Árabia, reuniu seus capitães e alcaides e devastou os reinos da Babilônia com tamanha boa sorte que arrassou seus castelos, dizimou sua gente e aprisionou o rei. Amarrou-o em cima de um camelo veloz e o levou para o deserto. Cavalgaram três dias, e disse-lhe: "Ó rei do tempo e substância e cifra do século!, na Babilônia desejaste que eu me perdesse num labirinto de bronze com muitas escadas, portas e muros; o Poderoso teve por bem que eu agora te mostre o meu, onde não há escadas a subir, nem portas a forçar, nem cansativas galerias a percorrer, nem muros para impedir a passagem".
Logo depois, dessamarrou-o e o abandonou no meio do deserto, onde ele morreu de fome e de sede. A glória esteja com Aquele que não morre.


sábado, 25 de dezembro de 2010

Feliz Natal


Os livros não ficam de fora no Natal... não mesmo!!!
há sempre uma lista de livros que nos acompanha o ano inteiro... livros lidos... por ler... que gostamos... que abandonamos... e há aqueles que compramos para presentear; livros que são presentes de Natal!!!
Minha lista de livros prediletos acolhe entre muitos, dois livros (obras) que eu acredito ser um presente de Charles Dinckes e Hans Christian Andersen para a humanidade deslumbrar precisamente nessa época do ano... eu falo de Cânticos de Natal e A Pequena Vendedora de Fósforos.

Meus livros fazem parte do meu Natal e por isso se arrumam assim...



Aqueles que não puderam fazer parte da árvore tiveram outra ideia... formaram os presentes.

sábado, 18 de dezembro de 2010

O Príncipe Feliz - Oscar Wilde

Bem no alto da cidade, numa alta coluna, erguia-se a estátua do príncipe feliz. Era todo coberto de finas folhas de ouro puro, tinha nos olhos duas safiras brilhantes, e um grande rubi vermelho reluzia no cabo de sua espada.
Na verdade era muitissimo admirado.
- É tão belo quanto um cata-vento - observou um dos conselheiros da cidade, que desejava ganhar reputação por ter gosto artistico -; só não é muito útil - acrescentou, temendo que o povo o considerasse pouco prático, o que realmente não era.
- Por que você não pode ser como o princípe feliz? - perguntou uma mãe ao filho que pedia a lua. - O príncipe feliz nunca chora por motivo algum.
- Fico satisfeito que haja alguém no mundo que seja realmente feliz - murmurou um homem desapontado, enquanto fitava a estátua maravilhosa.
Parece mesmo um anjo - disseram as crianças da Escola de Caridade, ao saírem da catedral em seus mantos escarlates e aventais alvos.
- Como sabem? - disse o professor de matemática-, nunca viram um anjo.
-Ah! mas nós vimos, em sonhos - responderam as crianças; e o professor de matemática franziu as sobrancelhas, com semblante muito severo, pois não aprovava que crianças sonhassem.
Uma noite, voou sobre a cidade uma pequena andorinha. Suas companheiras tinham partido para o Egito seis semanas antes, mas ela ficou pra trás porque estava apaixonada pelo mais belo junco. Ela o conheceu no príncipio da primavera, enquanto voava rio abaixo atrás de uma mariposa amarela, e ficou tão atraída por aquela figura esquia, que parou pra falar-lhe.
- Poderei amá-lo? - disse a andorinha, que gostava de ir direto ao assunto, e o junco fez-lhe uma reverência. Então voou ao seu redor, tocando a água com as asas, provocando ondulações prateadas. Era sua maneira de fazer a corte, que durou o verão inteiro.
É uma relação ridícula - chilchearam as outras andorinhas -, ele não tem dinheiro, e tem parentes demais - e na verdade o rio estava bem cheio de juncos. quando veio o outono, voaram para longe.
Depois que partiram, andorinha sentiu-se solitária e começou a cansar-se de seu amado. - Ele é de pouca conversa, e temo que seja galanteador, porque está sempre flertando com a brisa. E, certamente, toda vez que a brisa soprava, o junco fazia as mais graciosas mesuras. - Reconheço que seja caseiro - continuou -, mas adoro viajar, e meu marido, consequentemente, também deveria gostar de viagens.
- Virá comigo? - disse finalmente a ele; mas o junco meneou a cabeça, tão arraigado estava a seu lar.
- Só estava gracejando comigo - disse ela. -Vou para as pirâmides. Adeus! - e se foi.
O dia todo ela voou, e de noite chegou à cidade. - Onde pernoitarei? Espero que a cidade esteja preparada para me abrigar.
Então viu a estátua sobre a alta coluna, e disse:
- Vou me acomodar ali, é um lugar muito bem localizado, com bastante ar fresco. - Assim, pousou entre os pés do príncipe feliz.
- Tenho um aposento de ouro - disse baixinho para si, olhando ao redor, e preparou-se para dormir; mas no momento em que colocava a cabeça sob a asa, uma enorme gota de água caiu sobre ela. - Que estranho! não há uma única nuvem no céu, as estrelas estão brilhando e, entanto chove. O clima no Norte da Europa é mesmo horrível. O junco gostava de chuva, mas isso era puro egoísmo dele.
outra gota caiu.
- Qual a utilidade de uma estátua, se não serve para proteger da chuva? Tenho que procurar uma boa chaminé - disse ela, e decidiu ir embora.
Mas antes que abrisse as asas, uma terceira gota caiu, ela levantou os olhos e viu... Ah! o que ela viu?
Os olhos do príncipe feliz estava cheios de lágrimas, e lágrimas corriam em suas faces douradas. Seu rosto era tão belo sob o luar que a pequena Andorinha encheu-se de compaixão.
- Quem é você?  disse ela.
- Sou o príncipe feliz.
Por que está chorando então? - perguntou a andorinha. - Encharcou-me completamente.
-Quando era vivo e tinha um coração humano - respondeu a estátua -, eu não sabia o que eram lágrimas, pois vivia no Palácio de Sans-Souci, onde à tristeza não é permitido entrar. Durante o dia, brincava com meus companheiros no jardim, e à noite conduzia a dança no grande salão. Em volta do jardim havia um muro muito alto, mas nunca me importei em saber em saber o que existia além dele, pois tudo ao meu redor era tão lindo. Meus cortesãos chamavam-me príncipe feliz, e feliz em verdade eu era, se o prazer é felicidade. Assim vivi e assim morri. E agora que estou morto, colocaram-me aqui tão alto que posso ver a feiúra e toda a miséria de minha cidade e, embora meu coração seja de chumbo, não posso fazer outra coisa senão chorar.
O quê? Ele não é de ouro maciço? - disse a andorinha para si. Era muito educada para fazer comentários pessoais em voz alta.
- Longe - continuou  a estátua com sua voz baixa e musical -, muito longe numa rua estreita, há uma casinha pobre. Uma janela está aberta e vejo uma mulher sentada à mesa. Tem o rosto magro e abatido, e as mãos ásperas, picadas pela agulha, pois é costureira. Está bordando flores-da-paixão num vestido de cetim para a mais adorável dama de honra da rainha vestir no próximo baile da corte. Num leito, no canto do quarto, está deitado seu filho doente.Tem febre, e pede laranjas. A mãe não tem nada para dar-lhe, exceto água do rio, e por isso ele está chorando. Andorinha, andorinha, pequena andorinha, não quer levar-lhe o rubi do cabo de minha espada? Meus pés estão presos a este pedestal e não posso me mover.
- Esperam-me no Egito - disse a andorinha. - Minhas amigas estão voando sobre o Nilo, conversando com as flores de lótus. Em breve vão dormir na tumba do grande rei. O próprio rei está ali, em seu sarcófago coberto de adornos. Está enrolado em linho amarelo e embalsamado com especiarias. Em seu pescoço há um colar de jade verde-pálido, e suas mãos são como folhas secas.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, não quer ficar comigo por uma noite, e ser minha mensageira? O menino está com tanta sede, e a mãe tão triste...
- Acho que não gosto de meninos - respondeu a Andorinha. - No verão, quando eu estava no rio, havia dois meninos rudes, os filhos do moleiro, que estavam sempre atirando pedras em mim. Nunca me acertaram, é claro; nós andorinhas voamos bem demais para que nos acertem, e venho de uma família famosa pela agilidade; ainda assim, foi um sinal de desrespeito.
Mas o príncipe feliz parecia tão triste que a andorinha se condoeu:
- Está muito frio aqui, mas ficarei com você por um noite, e serei sua mensageira.
- Muito obrigada, andorinha - disse o príncipe.
Então a andorinha tirou o enorme rubi da espada do príncipe e voou, levando-o no bico por sobre os telhados da cidade.
Passou pela torre da catedral, onde anjos de mármore branco estavam esculpidos. Passou pelo palácio e ouviu o rumor da dança. Uma jovem formosa apareceu na sacada com su namorado.
- Como estão maravilhosas as estrelas - disse ele - e como é maravilhoso o poder do amor!
- Espero que meu vestido fique pronto a tempo a tempo para o baile do Estado - respondeu a jovem. - Mandei que bordassem flores-da-paixão nele, mas as costureiras são tão preguisosas!
A andorinha passou sobre o rio, e viu as lanteranas penduradas nos mastros dos navios. Passou sobre o gueto e viu velhos judeus negociando entre si, pesando dinheiro em balanças de cobre. Finalmente, chegou à casa pobre e espiou. O menino agitava-se febrilmente no leito, e a mãe caíra no sono, tão cansada estava. saltou para dentro e deixou suavemente o grande rubi sobre a mesa, ao lado do dedal. Então voou suavemente em volta do leito, abanando a fronte do menino com as asas.
- Sinto-me refrescar - disse o menino -, acho que estou melhorando - e mergulhou num sono delicioso.
Então a andorinha voltou ao príncipe feliz, e contou-lhe o tinha feito.
- Engraçado - observou ela -, mas agora sinto calor, embora esteja tão frio.
- É porque praticou uma boa ação - disse o príncipe. E a pequena andorinha começou a pensar, adormecendo logo em seguida. Pensar sempre a fez ficar com sono.
Quando o dia raiou, ela voou ao rio e tomou um banho.
- Que fenômeno notável - disse o professor de ornitologia ao passar pela ponte. - Uma andorinha no inverno! -E  escreveu uma longa carta sobre isso no jornal local. Todos a citavam, porque estava cheia de palavras que não compreendiam.
Esta noite parto para o Egito - disse a andorinha, bastante animada com a perspectiva. visitou todos os monumentos públicos, e ficou posada um longo tempo no topo do campanário da igreja. Onde quer que fosse, os pardais aplaudiam, dizendo uns aos outros:
- Que estrangeira distinta! - E ela se divertiu bastante com isso.
Quando a lua surgiu, voltou ao príncipe feliz e disse:
- Tem alguma encomenda para o Egito? Já estou partindo.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, não quer ficar comigo mais um noite?
- Esperam-me no Egito- respondeu a andorinha - Amanhã minhas amigas voarão até a segunda catarata. Os hipopótamos deitam-se ali entre os caniços, e num grande trono de granito está sentado o deus Memnon. Durante a noite ineira ele contempla as estrelas, e quando brilha a estrela da manhã, ele amite um canto de alegria e depois silencia. Ao meio dia os leões vêm à margem das águas para beber. Têm olhos que se parecem com berilos verdes, e seus rugidos são mais estrondosos do que o rugir das cataratas.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, longe, no outro lado da cidade, vejo um jovem numa água furtada. Está debruçado sobre uma mesa coberta de papéis, e num copo ao seu lado há um maço de violetas murchas. seu cabelo é castanho e crespo, seus lábios são vermelhos como a romã, e tem olhos grandes e sonhadores. Ele tenta terminar um peça para o diretor do teatro, mas sente muito frio para continuar escrevendo. Não há fogo no fogão, e a fome o enfraqueceu.
- Ficarei com você mais um noite - disse a andorinha, que no fundo tinha um bom coração. - Devo levar-lhe outro rubi?
- Ai de mim! Não tenho mais rubis - disse o príncipe -; meus olhos são tudo o que me resta. São feitos de safiras preciosas, trazidas da Índia há mil anos. Arranca um delas e leva ao jovem. Ele a venderá ao joalheiro, comprará comida e lenha, e terminará a peça.
- Caro príncipe - disse a andorinha -, não posso fazer isso - e começou a chorar.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe - faça o que lhe ordeno.
Então a andorinha arrancou o olho do príncipe e voou até a água furtada do estudante. Era muito fácil entrar já que havia um buraco no telhado. Arremessou-se através dele e entrou no quarto. O jovem tinha a cabeça enterrada nas mãos, e não viu o bater das asas; quando levantou os olhos, encontrou a bela safira pousada sobre as violetas murchas.
- Começo a ser apreciado. Isto de ve ser de algum adimirador. Agora posso terminar minha peça - gritou, parecendo muito contente.
No dia seguinte, a andorinha foi ao porto. Pousou no mastro de uma grande embarcação e observou os marinheiros puxando caixas enormes do porão do navio. - Upa! - gritavam eles a cada caixa que levantavam.
- Vou para o Egito! - bradou a andorinha, mas ninguém lhe deu atenção, e quando a lua surgiu, voou até o príncipe feliz.
- Vim para dizer-lhe adeus.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, não quer ficar comigo por mais um noite?
- É inverno - respondeu - e a neve fria logo vai chegar. No Egito o sol é quente sobre as palmeiras, e os  crocodilos deitam-se na lama e olham preguisoçamente ao redor. Minhas companheiras estão construindo um ninho no templo de Baalbec, e as pombas rosadas as observam, arrulhando entre si. Caro príncipe, tenho que deixá-lo, mas nunca o esquecerei; e na próxima primavera trarei duas lindas jóias para substituir as que doou. O rubi será mais rubro que a rosa vermelha, e a safira tão azul quanto o imenso oceano.
- Na praça logo abaixo - disse o príncipe feliz - há uma pequena vendedora de fósforos. Ela os deixou cair na sarjeta, e estão todos estragados. Seu pai baterá nela se não levar dinheiro para casa, e por isso ela está chorando. Não tem sapatos nem meias, e sua cabecinha está descoberta. arranca meu outro olho e leva-lhe, para que seu pai não a maltrate.
- Ficarei com você mais um noite - disse a andorinha -, mas não posso arrancar outro olho. Você ficcaria completamente cego.
- Andorinha, andorinha, pequena andorinha - disse o príncipe -, faça o que lhe ordeno.
Ela arrancou então o outro olho do príncipe e alçou vôo. Precipitou-se sobre a vendedora de fósforos e deixou cair a jóia na palma de sua mão.
- Que lindo pedacinho de vidro - disse ela, e correu para casa sorrindo.
A andorinha voltou ao príncipe e disse:
- Está cego agora; então ficarei com você para sempre.
- Não, pequena andorinha - disse o príncipe -, deve partir para o Egito.
- Ficarei com você para sempre - disse a andorinha, e adormeceu aos pés do príncipe.
Durante todo o dia seguinte, ficou pousada no ombro do príncipe, e contou-lhe histórias sobre coisas que viu em terras estranhas. falou-lhes sobre íbis vermelhos, que postavam em longas fileiras em margens do Nilo, apanhando peixes dourados com os bicos; sobre a Esfinge, que é tão antiga quanto o próprio mundo, vive no deserto e tudo sabe; sobre os mercadores, que caminham vagarosamente ao lado de seus camelos e levam contas de âmbar nas mãos; sobre o rei das montanhas da Lua, que é negro como o ébano e cultua um imenso cristal;sobre a grande serpente verde, que dorme numa palmeira e tem vinte sacerdotes para alimentá-la com bolos de mel; e sobre os pigmeus que navegam sobre um grande lago em largas folhas e que estão sempre em guerra com as borboletas.
- Querida andorinha - disse o príncipe -, você me conta coisas espantosas, mas mais espantoso é o sofrimento de homens e mulheres. não há mistério maior que a miséria. Voe por sobre minha cidade, pequena andorinha, e conte-me oque vir por lá.
Assim, a andorinha voou sobre a grande cidade e viu ricos divertindo-se em suas residencias luxuosas, enquanto os mendigos sentavam-se em frente aos portões. Voou por becos escuros e  e viu os rostos pálidos das crianças esfaimadas, olhando apaticamente para as ruas sombrias. Sob o arco de um ponte estavam deitados dois meninos, abraçados um ao outro, tentando manter-se aquecidos.
- Temo tanta fome! - diziam os meninos.
- Vocês não podem ficar aqui - gritou o guarda noturno, e eles se retiraram, vagando sob a chuva.
Então a andorinha voltou e contou ao príncipe o que tinha visto.
- Sou coberto de ouro puro - disse o príncipe -, você deve tirá-lo folha por folha, dá-lo aos meus pobres; os vivos sempre acham que ouro pode fazê-los felizes.
Folha após folha de puro ouro a andorinha arrancou, até que o príncipe feliz ficasse fosco e acinzentado. Folha após folha de puro ouro levou aos pobres, e os rostos das crianças tornaram-se mais rosados, e elas riam e brincavam na rua.
- Agora temos pão - gritavam as crianças.
Então veio a neve, e depois da neve, a geada. As ruas pareciam feitas de prata, de tão luminosas e brilhantes; pontas de gelo, longas como adagas de cristal, pendiam dos beirais das casas; todos passavam vestindo casacos de pele, e as crianças usavam gorros escarlate, patinando sobre o gelo.
A pobre andorinha sentia cada vez mais frio, mas não queria deixar o príncipe, pois o amava muito. Apanhava as migalhas à porta do padeiro quando ele não estava olhando, e tentava se aquecer agitando as asas.
Mas por fim sentiu que iria morrer. Mal tinha forças para voar uma vez mais ao ombro do príncipe.
- Adeus, querido príncipe - murmurou -, deixa-me beijar suas mãos?
-Fico contente que vá para o Egito afinal, pequena andorinha -, disse o príncipe. - Ficou muito tempo aqui, mas deve beijar-me os lábios, pois a amo.
- Não é para o Egito que vou - disse a andorinha. - Vou para a casa da morte. A morte é irmã do sono, não é mesmo?
Então beijou o príncipe feliz nos lábios e caiu morta aos seu pés.
Naqule momento, um estranho estlo soou dentro da estátua, como se algo se tivesse quebrado. A verdade é que o coração de chumbo despedaçou-se em dois. Era certamente um geada terrível.
Na manhã seguinte, bem cedo, o prefeito caminhava na praça em companhia dos conselheiros da cidade. Ao passar pela coluna, olhou para a estátua:
- Meu Deus que aspecto miserável tem o príncipe feliz! - disse ele.
- Muito miserável, realmente - disseram os conselheiros da cidade, que sempre concordavam com o prefeito. - Na verdade, é pouco mais que um mendigo!
- Pouco mais que um mendigo - disseram os conselheiros da cidade.
E há até um passáro morto aos seus pés! - continuou o prefeito. - Devemos emitir um decreto que proíba os passáros de morrerem aqui. - E o secretário da cidade anotou a sugestão.
Então, puseram abaixo a estátua do príncipe feliz. - Como já não é belo, já não é mais útil - disse o professor de Arte na universidade.
Assim, fundiram a estátua numa fornalha e o prefeito convocou uma reunião com a corporação, para decidir o que seria feito do metal.
- Naturalmente precisamos ter outra estátua - disse ele -, e será com minha imagem.
- Com miha imagem - disse cada um dos conselheiros da cidade, e começaram a discutir. Da última vez que soube deles, ainda estavam discutindo.
- Que coisa estranha! - disse o contramestre da fundição. - Este coração de chumbo não derrete na fornalha. Vamos jogar fora. - Assim, jogaram-no em um monte de lixo onde estava também a andorinha morta.
-Traz-me as duas coisas mais preciosas da cidade - disse Deus a um de seus anjos; e o anjo trouxe-Lhe o coração de chumbo e o pássaro morto.
- Escolheste muito bem - disse Deus -, pois no jardim do Paraíso este passarinho cantará eternamente, e em minha cidade dourada, o príncipe feliz me louvará.